Carlos Boechat
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AMORES ENTRE HOMENS

Resumo
Amores entre Homens. 


O presente trabalho tem por objetivo levantar a questão sobre a efemeridade ou não das relações homoeróticas masculinas. Apoiado em entrevistas e escasso material teórico sobre o tema, podemos observar que as relações homoeróticas ou heterossexuais têm muitas semelhanças em suas construções. Entretanto, aquelas formadas por homens mostram características singulares, uma vez que esses são constituídos social e historicamente tendo na conquista e na competição um dos valores de masculinidade. Também por não gerarem filhos e não terem preocupações com descendências tendem a trocas de parceiros com um pouco mais de freqüência do que os heterossexuais. E mais: como ainda não há fortes parâmetros de construção de relacionamento amoroso, isso é um dos fatores decisivos na efemeridade. Mesmo assim, os entrevistados, independentemente da idade ou condição sócio-cultural, afirmaram que desejam ter um relacionamento duradouro, fiel, impregnado de todos os valores culturais  heterossexuais. Percebo que não podemos avaliar um relacionamento por medida com o outro. Cada um tem suas idiossincrasias e a comparação seria tendenciosa e injusta. Como qualquer ser humano, homens que se amam querem ser amados e buscam a certeza de que poderá confiar no outro, sentindo-se menos sozinhos no mundo.

 1                 Introdução

“Amor entre Homens” é mais um convite à reflexão do que uma proposta teórica ou um estudo aprofundado da temática do relacionamento amoroso entre homens. Um convite para repensarmos valores e posições muitas vezes preconceituosas e discriminatórias. Percebemos isso pela dificuldade em encontrar material teórico sobre uniões homossexuais masculinas, diferentemente das uniões heterossexuais, que contam com uma quantidade de livros, pesquisas e teorias múltiplas sobre esse tipo de casamento. Isso demonstra a idéia discriminatória ainda presente nos centros de pesquisas, que têm as relações heterossexuais como as legítimas e como foco válido de pesquisa em nossa cultura.

 Neste texto, utilizo o termo “homoerótico”, atualmente mais utilizado na sexologia moderna e pelos grupos de apoio aos gays. Faço assim porque considero que o tradicional “homossexualismo” carrega todo o preconceito que foi sendo incorporado a ele durante os séculos. Esse peso pode ser observado em todos os textos e leis repressoras que estão relacionados com o tema.

 O termo homossexual acaba limitado apenas à conotação de sexo entre homens e propomos o conceito ampliado de amor entre homens. Por isso, homoerótico, ou homoerotismo, abarca uma proposta ampliada, mais afetiva e menos sexual. O homoerotismo fala do amor entre iguais: homo é semelhante, igual; Eros é amor.

A partir de conversas informais e de entrevistas com homens homoeróticos, começamos a formar a idéia sobre a efemeridade das suas relações amorosas. E fazemos essa discussão sobre a efemeridade dos relacionamentos homoeróticos masculinos na tentativa de verificar se o senso comum tem fundamento quando afirma, de maneira geral, que “os homens são infiéis”, “só pensam em sexo”, “separam amor do sexo” — e tantas outras frases cotidianas que expressam as relações amorosas e sexuais dos homens como um todo.

Os homoeróticos, como homens que são, diferindo basicamente no objeto de seu desejo, são construídos social e historicamente nos padrões semelhantes do gênero e das expectativas sociais pelo menos até a adolescência. Nesta fase, a apropriação de valores do grupo e o afrouxamento das forças familiares forçam na definição das preferências sexuais, podendo, então, construir outras formas de expressões eróticas, diferentes daquelas vividas da infância até então.
Portanto, a construção masculina é semelhante à dos heterossexuais, trazendo toda uma estereotipia de comportamentos que, necessariamente, não são verdadeiros. Em pesquisa realizada por BOECHAT e TRINDADE (2003), verificou-se que os homens consideram-se afetivos e têm na mulher sua fonte primeira de amor e interesse, desfazendo a idéia do senso comum de seres frios e racionais.

A grande diferença é que os homens não podem expressar sua afetividade como fazem as mulheres, por considerarem estas atitudes como femininas, frágeis. Se eles expressassem a afetividade de forma semelhante a elas estariam muito próximo ao feminino, o que, em nossa cultura, seria uma destruição dos papéis de masculinidade socialmente constituídos (de seres fortes, controladores etc.).

Já os homoeróticos, por preferirem o mesmo sexo, por conviverem com as mulheres e seus valores, e por terem outros tipos de interesses, muitas vezes diferentes do masculino padrão cultural, permitem-se essa expressão. Falam e questionam sobre a afetividade sem o medo de ser feminino, não necessitando de manter distância de seus sentimentos e, por que não dizer, gostando dos benefícios que a sensibilidade proporciona.

É claro que existem homoeróticos frios, racionais, portadores de muitos outros trejeitos associados apenas ao masculino. Infelizmente, atribuímos a todos as mesmas características, sem percebermos que não existe hegemonia no gênero humano e cada ser é único e especial em suas diferenças.

Este trabalho tenta trazer mais uma contribuição para o repensar de nossos estereótipos e paradigmas, auxiliando na compreensão dos seres que se amam, colocando uma luz na compreensão dos relacionamentos afetivos e nas relações de casais. Pode servir de base para outros estudos que o complementariam, como, por exemplo, com as mulheres homoeróticas, dentre outras possibilidades, além de agregar discussão teórica e de pesquisa em um universo de referências teóricas e bibliográficas ainda incipientes no Brasil.

Face ao processo de repressão de nossa cultura, incluímos um capítulo sobre a construção do preconceito desde a época do descobrimento, bem como a freqüência do homoerotismo no mundo primitivo e aculturado. Há ainda uma discussão sobre o casamento e a descrição de um caso de união gay de sucesso que traz algumas características dessa relação. Por fim, apresentamos um glossário de expressões da cultura homoerótica, para um melhor entendimento dos termos falados em nosso cotidiano.

2                 Objetivos

 1 — Verificar se as relações homoeróticas masculinas são efêmeras, e suas possíveis razões.

2 — Pesquisar o que contribui para a durabilidade ou continuidade das relações homoeróticas masculinas.

3 – Compreender melhor o que os sujeitos pensam sobre a efemeridade das relações e as possíveis contribuições de manutenção das mesmas.

3                 Contextualização do Tema

Sou psicólogo clínico há 22 anos e tenho especialização em sexualidade humana pela Universidade Gama Filho, do Rio de Janeiro (1992). Venho trabalhando com a temática da sexualidade em consultório, participando de debates em congressos e seminários e proferindo palestras em escolas. Desta experiência, resultaram dois livros sobre sexualidade: Sexo sem segredo, pela Bloch Educação, e Falando de sexo com amor, pela Editora Vozes.
Meu dia-a-dia profissional é permeado destes saberes e sempre me inquietou a construção das relações homoeróticas, uma vez que, pelo senso comum, dois homens nunca poderiam ser fiéis e, portanto, as relações amorosas seriam efêmeras, analisando a partir da premissa heterossexual de fidelidade e monogamia.
Contatos com amigos homoeróticos, em conversas informais, mostravam uma diversidade de conceitos, variando da total fidelidade tradicional e monogâmica até ao consentimento mútuo de relações com outros parceiros, inclusive com o compartilhamento de um terceiro na relação dual. Tais variedades instigavam-me.Durante o Mestrado, tratei das representações sociais de masculinidade, estudando a construção e a percepção do homem por ele mesmo, e chegando a uma visão diferente do gênero masculino, uma vez que a afetividade e o valor da relação amorosa foram muito valorizados, o que, de certa forma, contradiz o senso comum de homem frio, racional e pouco emotivo.
Durante o curso de Pós-Graduação Lacto Sensu “Intervenção Sistêmica com Famílias”, realizado pelo Crescente, em parceria com Faculdade de Direito de Vitória — FDV-ES, comecei a estudar as várias abordagens de intervenção nas relações de casais, uma vez que esse é meu foco de estudos e prática clínica, e percebi a pouca bibliografia sobre as relações de união afetivas homoeróticas.
Em conversa com a coordenadora Marlene Simonetti, surgiu a idéia desse trabalho, uma vez que ela trabalha com grupos de homoeróticos, e também estava curiosa pelos resultados de uma pesquisa nesta área. Houve também o incentivo de um grupo de amigos e clientes homoeróticos, que debatem esse tema, inscentivando-me ainda mais.

4             Procedimento metodológico

Com a intenção de especificar um universo para a pesquisa, estabeleci os sujeitos a serem analisados com base em um único critério: um mínimo de cinco anos de relacionamento amoroso com uma única pessoa, morando ou não sob o mesmo teto.
Esta seleção deve-se, no meu entender, à possibilidade de que, com cinco anos de relacionamento, tenham uma noção de convivência cotidiana, com a possível diminuição das fortes emoções que dominam o início das relações amorosas, dando aos mesmos condições de pensar sobre suas experiências.
Tenho consciência de que há outras variáveis que poderiam nortear a seleção dos sujeitos, tais como faixa etária, grau de instrução, nível econômicos etc. Entretanto, em meu trabalho de pesquisa sobre a masculinidade (BOECHAT e TRINDADE, 2003 — antes citado), levantei a hipótese de que diferentes graus de instrução, faixas de idade e estado civil poderiam influenciar na percepção do sujeito do que é ser homem. Os resultados não demonstravam grandes diferenças nestas categorias.
Como meu objeto de estudo é uma indagação sobre um tema problematizado — continua sendo o homem — posso inferir que as relações entre as variáveis também não terão significativas diferenças e deixo para outros pesquisadores a tarefa de as explorarem.
Dando início aos trabalhos, entrei em contato telefônico com amigos, conhecidos e clientes, explicando a proposta da pesquisa e marcando um horário para a entrevista. Tal encontro deveria ser em um local livre de interrupções — como a casa deles, meu consultório ou minha residência.

As entrevistas aconteceram com os sujeitos separados, mesmo quando eram casais que moravam juntos. Penso que a presença do parceiro interferiria em relatos que perpassam conceitos como fidelidade, continuidade etc.
Como método de trabalho, utilizei o conhecimento expresso em Emergência Seriada da Amostra

[1], me apoiando na técnica conhecida como “Bola de Neve”. Por ela, escolhe o sujeito da primeira entrevista, chama-se os próximos entrevistados caso os dados da entrevista sejam diferentes do anterior, até que os entrevistados passem a falar dados semelhantes — “ponto de redundância” —, a partir do qual não se justificam a coleta de novos dados.
As entrevistas foram estruturadas em apenas duas questões, deixando o entrevistado livre para dizer o que quisesse. A primeira era: “Você acha que as uniões homoeróticas masculinas são efêmeras? Sim. Não. Por quê?” A outra: “O que contribui para a durabilidade ou continuidade das uniões homoeróticas masculinas?” Ao término, organizei os dados interpretando os fatos, remetendo os diagnósticos aos sujeitos para leitura, dando-lhes a oportunidade para acrescentar idéias, retirar informações ou questionar os dados apresentados.
Esse instrumental foi elaborado em conjunto com a coordenadora do curso e durante as aulas de Metodologia Científica. O documento de apoio, além das questões norteadoras, trazia também um número de identificação do sujeito, na ordem em que ele era entrevistado, e o levantamento de informações como idade, escolaridade, tempo de união e se atualmente encontrava-se acompanhado.
Para sustentar maior credibilidade (conforme MAZZOTTI, na obra citada antes), remetemos o relatório para uma terceira pessoa, que poderia apontar falhas, pontos obscuros e oferecer sugestões de focos exploratórios não atingidos pelo pesquisador.
Não defini um número específico de sujeitos. Busquei aqueles que estavam disponíveis, dentro do critério da amostra, entrevistando oito pessoas. Percebi que a repetição, ou o Ponto de Redundância, se apresentou a partir do sétimo sujeito. Ao entrevistar este e o oitavo, percebendo a repetição, encerrei o trabalho, ficando com o último (7º.) antes de se iniciar a repetição.
Com a intenção de manter o anonimato, foram criados nomes fictícios, mas as idades são verídicas.

Nossos entrevistados foram:

1 — Edgar, 32 anos, escolaridade superior com seis anos de relacionamento e que atualmente continua com o parceiro.

2 — Geraldo, 40 anos, escolaridade superior, 13 anos em um relacionamento encerrado há dois anos; atualmente, vive há oito meses com outro parceiro.

3 — David, 27 anos, escolaridade superior em andamento, oito anos de união, encerrada há um ano; atualmente, já vive há dois anos com outro companheiro.

4 — Afonso, 50 anos, escolaridade superior, 27 anos de relacionamento.

5 — Odilon, 38 anos, ensino médio, 11anos de relacionamento.

6 — Eduardo, 40 anos, escolaridade superior, cinco anos de relacionamento.

Pronto o relatório, utilizei referências teóricas variadas, bem como a da Abordagem Sistêmica da Terapia de Casal e Família que norteia o curso de especialização em questão. Pelas leituras e buscas bibliográficas realizadas, percebi um referencial teórico incipiente para fundamentar tal pesquisa. Assim, tentarei elaborar uma análise sobre a efemeridade ou não das relações homoeróticas masculinas, com auxilio de textos sobre relacionamentos amorosos, conjugais e terapia de casais.

 5                 Construção de Gênero

Definimos gênero como um elemento constitutivo das relações baseadas nas diferenças que distinguem os sexos ou nas diferenças percebidas entre os sexos. Gênero implica a construção social e histórica do ser mulher e do ser homem. Dessa forma, o conceito de gênero encontra-se unido aos conceitos de identidade sexual, papel sexual e de relações entre os sexos.
Constrói-se o gênero após o nascimento, em um processo simbiótico com as figuras parentais, até expressar-se como individualidade em atitudes e sentimentos sobre o eu. É uma construção que ocorre em interação entre o sujeito e o meio, por aprendizagem. Importante pontuar que esta construção começa a ser elaborada desde a gestação da criança pelos pais e grupo social, quando se elegem as atitudes, as fantasias, os desejos que o futuro ser irá reproduzir ou espera-se que o faça. Quando a criança nasce, ela já está dentro desta teia de relações em que, além de ser moldada pela observação do mundo ao redor, será estimulada a reproduzir comportamentos com os signos de seu grupo social.
Avalizando esta visão dimensionada, autores como GARCIA (1998).

[2] lecionam que o gênero reflete uma construção social importante de redefinição de comportamentos e atitudes humanas relacionadas à sexualidade e à reprodução, sendo um dos mais importantes organizadores de nossa sociedade. Portanto, masculinidades e feminilidades ocupariam um lugar na dimensão simbólica e nas relações sociais e institucionais. Entendimento, este, também defendido por NOLASCO (2001):
Gênero é uma categoria simbólica que representa um contínuo entre as representações masculinas e femininas. Não há uma polarização a priori, haja vista que não encontramos nem masculinidade nem feminilidade pura, seja no sentido biológico ou psicológico.

[3]Pode-se concluir, portanto, que o conceito de gênero refere-se à construção sócio-cultural, estabelecida a partir de um sexo biológico, delimitando um nível de informações prescritivas que se articulam em um conjunto de práticas, configurando os comportamentos respectivos. Constituídas no meio social e constituindo-se nele, estas cognições e práticas se codificam em um grupo de significações a partir das quais os grupos e sujeitos constroem suas identidades.
No Brasil, noções culturalmente definidas de gênero biológico e papel social são manipuladas, arranjadas e rearranjadas, sendo combinadas numa variedade de maneiras para construir imagens da masculinidade e feminilidade mais diversas, portanto, mais ambíguas, criando visões compostas do potencial do macho e da fêmea que codificam um sistema mais elaborado de definições sexuais.
A identidade do homem brasileiro está permeada historicamente por um desejo de reconhecimento social que vem conduzido por um apelo em ser carismático, centro das atenções, sedutor e galanteador. Estas características são definidas pelo que os homens imaginam que se espera deles socialmente. Esta expectativa é resultante da incorporação dos valores europeus, presentes na estratégia adotada para a colonização do Brasil.

[4]O que se percebe no universo masculino brasileiro, portanto, é a presença tanto da velha ordem colonial quanto da republicana, ainda hoje atuantes no centro da nossa sociedade através do modelo de construção das identidades sociais e da trama de uma política populista calcada em valores morais eminentemente patriarcais.
A expectativa de que, no Brasil, os homens sejam “safos”, “espertos”, “tenham jogo de cintura” e “consigam ser ludibriadores” é entendida como atributos “naturais” conferidos a suas identidades masculinas. Porém, tais atributos foram incorporados a partir da organização das trocas comerciais que datam do Império.
Ocorre que o sistema e os valores embutidos nas trocas comerciais serão os mesmos utilizados pelos homens em suas trocas afetivas, geralmente clandestinas. A clandestinidade é um traço marcante tanto na organização do Estado como na vida privada dos homens brasileiros.
Como fala o nosso entrevistado Edgar, com 32 anos:
Os gays só se preocupam com futilidades. O sexo é garantido buscando-se o poder financeiro ou símbolos de status para segurar ou conquistar as pessoas.
Parece que os homens, homoeróticos ou não, sentem-se mais seguros nas relações em que a troca pende em favor de um nas relações duais. O desequilíbrio de forças emocionais ou financeiras parece ser um fator de manutenção das relações afetivas.
A literatura do machismo é essencialmente descritiva e demarca impressões, juízos de valor e estereótipos negativos. O machismo é concebido como um fenômeno latino-americano que se manifesta em sua forma mais primitiva nas populações rurais e na classe trabalhadora. A ele associam-se, ainda, características a que se atribuem valores negativos, como dominação, agressividade, narcisismo e sexualidade incontrolada.

[5]Na opinião de PARKER (1991).

[6], a destreza sexual e a prontidão para brigar em defesa da honra são, por si sós, indicativos de certo tipo de poder ou dominação — uma dominação que talvez seja a principal característica do machão e na qual ele, nitidamente, se funde com a figura do pai. Juntos, o machão e o pai fornecem um retrato ou, pelo menos, um ideal de homem moderno dificilmente distinguível do patriarca tradicional.
Eles incorporam um conjunto de valores profundamente enraizados que ainda continuam a funcionar na estruturação do mundo do gênero na vida brasileira. Uma série de valores na qual o simbolismo da sexualidade, violência e poder estão claramente ligados na configuração cultural da masculinidade.
A construção do homem homoerótico também vai por esta tendência e, dependendo de como foram às relações com seu pai, irá ser construído um homem que gosta de homem do tipo machão, com posturas másculas, ativas, mantenedoras financeiramente. Ou pode ser construído pela identificação com a mãe ou com um pai mais passivo, dócil, mandado pelas mulheres que, via de regra, mostram-se fortes, mandonas, dominantes do núcleo familiar.

Como expressa nosso entrevistado David, 27 anos:

Acredito que, nas relações homo, cada um tem que ter um papel específico de homem ou de mulher. Fica mais fácil manter o sentimento com estes papéis, mesmos que eles possam ser trocados de posições em outras situações.
Um importante componente neste processo é a identidade sexual, também chamada de Identidade de Gênero, que consiste na autoconsciência e sentimento que o individuo tem de pertencer a um ou a outro sexo. Para MONEY (1968), identidade sexual é o senso de si mesmo como homem ou como mulher; é a experiência pessoal ou privada do papel sexual, que consiste no quanto a pessoa diz ou faz para indicar aos demais, ou a si mesmo, o grau em que é homem, mulher ou ambivalente. Assim, o papel sexual é a expressão pública da identidade, é o conjunto de condutas associadas à sexualidade esperadas e socialmente exigidas do indivíduo, de acordo com o seu gênero

.[7]Em geral, identidade e papel sexual estão afinados aos estereótipos culturais dos sexos, fundamentados nas diferenças genitais femininas e masculinas. Entretanto, entre esses dois modelos ou pólos há uma infinidade de conjugações de níveis e intensidade de pessoas que extrapolam os espaços definidos pela sociedade para serem ocupados pelos homens e pelas mulheres. A construção do feminino e do masculino segue caminhos diferentes, mas que se cruzam, determinados pela cultura. Dentre vários fatores que intervêm nessa construção da diferença estão o lúdico, o brincar, os jogos infantis e as relações parentais familiares.
No processo de construção da identidade, BETTELHEIM (1998).

[8] enfatiza a importância da participação dos pais na criação de situações favoráveis à superação de conflitos, armadilhas e incertezas que cercam a criança desde o início de suas vidas. Os pais devem mostrar, claramente, o seu desejo de ajudar o filho a desenvolver a sua própria identidade, a reconhecer o seu próprio eu, a se afirmar com uma pessoa.
O senso de identidade da criança vai se formando a partir das complexas relações sociais do seu mundo particular, que inclui o cuidado dos pais e o processo de condicionamento que levara à formação de sua personalidade, à formação da autoconsciência e sentimento que a criança tem de pertencer a um ou a outro sexo.
É a partir deste processo que podemos encontrar os seres ambivalentes (bissexuais) ou os homoeróticos, uma vez que tiveram formas diferentes da maioria da cultura em seu processo de identificação com seus pais do mesmo sexo ou como absorveram as relações afetivas e os papéis sociais ensinados por estas relações. É claro que não estou dizendo que esta é a causa do homoerotismo, mas sim que é uma delas. Se estas influências familiares têm uma união com a genética, ou outras questões biopsicossociais não são objeto deste estudo.
A história antropológica de nossa espécie, originada nos grupos que se organizaram em cavernas e habitat fixos, construiu a necessidade de que as mulheres — que, na maior parte do tempo, estavam grávidas — se fixassem em um determinado sítio, enquanto os homens saiam à procura de caça ou para a defesa daquele ambiente.
Dessa forma, foi-se criando uma idéia de que o lugar do homem é o público e o da mulher, o privado, sendo estas responsáveis pela criação, agricultura, domesticação dos animais, cuidado com o fogo e construção da cultura. E, por serem cuidadas por seres do mesmo sexo, as meninas se diferenciam menos de seu primeiro objeto de amor (a mãe). Em conseqüência, os relacionamentos são vivenciados de forma diferente por meninas e meninos.
Para os meninos, separação e individuação se encontram vinculados à identidade de gênero, pois a separação da mãe é essencial para o desenvolvimento da masculinidade, uma vez que irão imitar seu progenitor e aprender os papéis masculinos da cultura transmitida por ele e pelo grupo social ao qual pertencem. Para as meninas, as questões de feminilidade ou identidade feminina não dependem fortemente da consecução da separação da mãe ou do processo de individuação.
As crianças, de modo geral, aprendem com os modelos de que dispõem, podendo estes não serem adequados para ela, e assim evitando a imitação ou construindo outros tipos de papéis para melhor adequar ao grupo social. E estas diferenciações de papéis não se dão somente pelos pais, mas nas interações sociais da criança, como nos jogos infantis, nas brincadeiras que fortalecem e diferenciam os gêneros em nossa cultura etc.
Hoje, por mais que tenhamos uma flexibilidade nas brincadeiras, por mais que as escolas de educação infantil integrem os gêneros, as próprias crianças necessitam destas diferenciações. E escolhem jogos e parcerias do mesmo sexo no intuito de construir sua identidade socialmente estabelecida, dando-lhes, nos parece, uma segurança interna de pertencer a um determinado tipo, categoria, facilitando o aprendizado e a inserção social. Portanto, a construção de gênero se dá independentemente de com quem amamos ou fazemos sexo. Esta construção se processa das maneiras as mais variadas, tanto nos homens como nas mulheres.
Nos homoeróticos, verificamos vários subgrupos destas construções: temos o homem “macho” (o bofe) com construção semelhante à dos heterossexuais, não se diferenciando em caracteres sociais; temos o gay, que constrói uma cultura própria com roupas e maneiras que os diferenciam do homem macho, mas que também o afasta do conceito de feminino ou do viadinho ou bicha. Os gays utilizam roupas justas para delinear o corpo, têm preocupação com a beleza estética, com a cultura, procuram ter atividades e gostos requintados até mesmo em relação ao seu grupo de origem familiar ou grupos de amigos homoeróticos ou não.
Temos a bicha, ou o viado, homoeróticos que se expressam de forma muita parecida com o feminino da cultura, com maneirismos, preferências, locuções verbais etc. Não chegam a ser o travesti, uma vez que não necessariamente utilizam roupas e adereços do sexo biológico oposto.
Posteriormente, abordarei os diferentes vocabulários deste universo de construção de gênero. Apontei alguns termos aqui para observarmos a necessidade do grupo de homens pertencerem a um gênero construído pelo grupo, de se unirem na força das minorias, formando guetos que os protegem das discriminações e preconceitos sociais.
Muitos destes tipos de homoeróticos não aceitam o outro grupo, fazendo uma separação clara e marcada, não os incluindo, muitas vezes, em seu grupo de amigos. Parece que, por não pertencerem aos gêneros oficialmente estabelecidos, necessitam criar um tipo de terceiro gênero para solidificar uma identidade individual e grupal, com um sentimento de pertencimento e auto-aceitação, com o amadurecimento de uma auto-estima bombardeada pela diferença e rejeição social.

6                 Homossexualismo na América Latina e no Brasil 

6.1             Homossexualidade na América Pré-colombiana 

Ultra oequinotialem no peccari.

[9]Ditado ibérico do Século XV 

Este texto que agora apresento é de um estudo do Antropólogo Luiz Mott, que pode ser encontrado, na íntegra  no site: http://geocities.yahoo.com.br/luizmottbr/artigos06.html. 
Para compreendermos a história do homoerotismo na América Pré-colombiana segundo conceitos antropológicos, temos, como indicativos, as esculturas e as cerâmicas com cenas de homoerótica, relatos dos primeiros cronistas que entraram em contato com os ameríndios; estátuas e gravuras alusivas ao homoerotismo.

[10] que sobreviveram ao tempo guardadas em museus; registros em manuscritos guardados pela Igreja Católica e pelos conquistadores do Novo Mundo; e alguns mitos conservados na memória e transmitidos oralmente pelos índios remanescentes destas antigas culturas.
Em seu estudo, Mott nos fala do relato Gonzalo Fernandez de Oviedo, em sua História general y natural de las Indias (1535):
O gosto pelo vício nefando se espalhava não só por toda área circum-caribe, mas também ao longo da Tierra Firme, atual costa da Venezuela e Colômbia, onde muitos índios e índias eram sodomitas.

Oviedo observou escandalizado que, em algumas partes destas Indias, traziam como jóia a um homem por sobre o outro, naquele diabólico e nefando ato de Sodoma, feitos de ouro. Eu vi uma destas jóias do diab o que pesava vinte pesos de ouro, muito bem lavrado, que se tomou no Porto de Santa Marta na costa de Tierra Firme, no ano de 1514. Assim, quem tais jóias valoriza e compõe sua pessoa, certamente usará de tal maldade na terra onde trazem tais erros, ou se deve ter por coisa usada, ordinária e comum.

[11]Também Francisco Lopez de Gomara (1552) refere-se à presença de ídolos homossexuais entre os nativos mexicanos de Sant Anton: “Acharam entre umas árvores um idolozinho de ouro e muitos de barro, dois homens cavalgando um sobre o outro à moda de Sodoma.

[12]Por ocasião da descoberta da Península de Yucatan, encontraram os espanhóis outra comprovação escultórica de que os maias prestavam culto ao amor unissexual:
Tenian muchos idolos de barro, unos como con caras de demonios y otros como de mujeres y otros de malas figuras, de manera que al parecer, estaban haciendo sodomias los unos indios com los otros.
[13] Também na América do Sul, na região dos Andes, foram encontradas provas arqueológicas confirmando a prática do homoerotismo antes da chegada dos europeus. Há notícia de que os espanhóis teriam igualmente encontrado e derretido no Peru estátuas em ouro representando cópula anal entre dois homens.

Preservaram-se, contudo, até nossos dias, diversas peças de cerâmica — reservatórios de água ou moringas — onde exímios artistas esculpiram na argila cenas explícitas de homoerotismo. Na célebre coleção de cerâmica erótica Mochica, coletada pela Família Larco, com data anterior a1.000 a.D. as peças retratam realisticamente cenas de penetração pelo ânus.
Além dos ídolos mexicanos e das cerâmicas peruanas, outra importante fonte pré-colombiana para se conhecer a prática da homossexualidade no Novo Mundo é a coleção dos célebres Códices Maias — como El Chilan Balam, El Popol Buj (Livro del Consejo) e as Profecias Maias —, obras que tratam da história mitológica e costumes desta civilização.
Através de outros manuscritos, notadamente do Códice Vaticano nº 3.738,

[14] constata-se que, no panteão asteca, ocupava lugar proeminente a deusa Xochiquetzal, divindade hermafrodita, protetora do amor e da sexualidade não procriativa, a qual, quando representada como homem, tornava-se o deus Xochipilli, padroeiro da sexualidade masculina, controlador das doenças sexualmente transmissíveis.

Segundo estes Códices, os Maias dividiam a história mitológica do mundo em diferentes períodos, sendo a Quarta Idade a que precede o momento anterior à chegada dos europeus. Também chamada de Idade Negra ou Idade das Flores, tinha como patrona Xochiquetzal, símbolo do sexo e da sensualidade.
São, contudo, os relatos dos primeiros cronistas contemporâneos às conquistas do Novo Mundo a fonte principal comprobatória da existência, grande extensão e variedade das práticas homossexuais na América Latina. Fernan Cortez, na sua primeira Carta de Relación, enviada ao Imperador Carlos V em 1519, dizia: “Soubemos e fomos informados com certeza que todos [os índios] de Vera Cruz são sodomitas e usam daquele abominável pecado”, acrescentando Lopez de Gomarra que os nativos do Rio Panuco e adjacências eram “grandíssimos putos”, usando o mesmo termo corrente desde a Idade Média em toda Península Ibérica, injustamente associando os homossexuais às prostitutas.
Tarefa extremamente difícil é avaliar o grau de objetividade ou subjetividade destas informações pois, em alguns casos, parece que os cronistas tendiam a exagerar os hábitos pecaminosos dos selvagens, exatamente com o escopo de justificar a conquista, redução ou genocídio dos mesmos.
Gomarra e outros cronistas associam a sodomia à impiedade: “Como não conhecem o verdadeiro Deus e Senhor, estão em grandíssimos pecados de idolatria, sacrifícios de homens vivos, comida de carne humana, fala com o diabo, sodomias, etc.”

Quanto aos astecas, nota-se clara contradição entre os primeiros observadores. Diaz del Castillo aponta-os como grandes amantes do homoerotismo, enquanto o franciscano Frei Bernardino de Sahagun exime-os desta abominação, ambos concordando, no entanto, quanto à afeminação e travestismo como elementos estruturais da prática homossexual masculina:
Eram todos los demás dellos sométicos, en especial los que viviam en las costas y tierra caliente, en tanta manera que andaban vestidos en hábito de mujeres, muchachos a ganar en el diabolico y abominable vicio.

[15]O citado missionário franciscano assim descreve os costumes destes nativos na sua História general de las cosas de Nueva España:

O somético paciente é abominável, nefando e detestável, digno de desprezo e do riso das gentes; o fedor e fealdade de seu pecado nefando não se pode sofrer, pelo nojo que causa aos homens. Em tudo se mostra mulheril e efeminado, no andar ou falar, e por tudo isso merece ser queimado.

[16]
Também Frei Barlomé da las Casas chama atenção para os nativos que missionou de serem muito afeitos às nefandices. E ressaltam os especialistas nas civilizações Maias e Astecas a contradição notada entre uma mitologia extremamente dionisíaca, valorativa inclusive do hermaforditismo e da homossexualidade, ao lado de uma prática moral bastante repressiva, do tipo apolíneo, prevendo até a pena de morte para certos casos de homossexualismo. 

“Aceita ou rechaçada, honrada ou severamente castigada, segundo a nação onde era praticada, a homossexualidade estava presente do Estreito de Berhing ao de Magalhães” — conclui com maestria Antonio Raquena, o primeiro estudioso das "anormalidades sexuales de los aborígenes americanos.”
Segundo o padre Domingo de Santo Tomás, geralmente entre os serranos e Yungas, em cada templo ou adoratório principal, tem um homem ou mais, segundo o ídolo, os quais andam vestidos como mulheres e um suas maneiras e trages e tudo o mais, arremedam a elas. Com estes, quase por via da santidade e da religião, têm nas festas e dias principais seu ajuntamento carnal e torpe, especialmente os principais senhores. Eles davam a entender que tal vício era uma espécie de santidade e religião.

[17] 
 A associação entre homossexualidade e xamanismo e outras manifestações religiosas é tema fartamente documentado em incontáveis culturas, em todos continentes e ao longo de toda história humana. Também entre os aborígenes do Brasil e das partes mais meridionais da América do Sul abundam evidências de que os amores homossexuais faziam parte das alternativas eróticas socialmente aceitáveis antes da chegada dos conquistadores portugueses.

Entre os Tupinambás, que ocupavam a maior parte da costa brasileira, os índios gays eram chamados de tibira, e as lésbicas, de çacoaimbeguira. Eis como são descritos no Tratado Descritivo do Brasil, em 1587:

Não contentes em andarem tão encarniçados na luxúria naturalmente cometida, são muito afeiçoadas ao pecado nefando, entre os quais se não tem por afronta. E o que se serve de macho se tem por valente e contam esta bestialidade por proeza. E nas suas aldeias pelo sertão há alguns que têm tenda pública a quantos os querem como mulheres públicas.

[18]
Eis como outro cronista Gandavo, já em 1576 descrevia a conduta das mulheres-machos:
"Algumas índias há que não conhecem homem algum de nenhuma qualidade, nem o consentirão ainda que por isso as matem. Estas deixam todo o exercício de mulheres e imitam os homens e seguem seus ofícios como se não fossem fêmeas. Trazem os cabelos cortados da mesma maneira que os machos e vão à guerra com seus arcos e flechas e à caça, perseverando sempre na companhia dos homens. E cada uma tem mulher que a serve, com quem diz que é casada. E assim se comunicam e conversam como marido e mulher.

[19]
Provavelmente, foram estas índias ultramasculinizadas, as çacoaimbeguira, que, ao serem vistas lutando contra os espanhóis no Rio Marañon, foram confundidas com as legendárias amazonas, mito que se propagou por todo o continente americano, muito embora carecendo de qualquer evidência confiável quanto à sua veracidade.
Entre os nativos Guaicuru, pertencentes à grande nação Guarani, residentes nas margens do Rio Paraguai, ainda nos finais do Século XVIII, eram encontrados índios homossexuais que, além de travestirem-se, eram totalmente identificados com o estilo de vida do sexo oposto:
Entre os Guaicurus e Xamicos, há alguns homens a que estimam e são estimados, a que chamam cudinhos, os quais lhes servem como mulheres, principalmente em suas longas digressões. Estes cudinhos ou nefandos demônios vestem-se e se enfeitam como mulheres, falam como elas, fazem só os mesmos trabalhos que elas fazem, trazem jalatas, urinam agaxados, têm marido que zelam muito e têm constantemente nos braços, prezam muito que os homens os namorem e, uma vez cada mês, afetam o ridículo fingimento de se suporem menstruados, não comendo como as mulheres naquela crise, nem peixe nem carne, mas sim de algum fruto e palmito, indo todos os dias, como elas praticam, ao rio, com uma cuia para se lavarem
.
[20]
A guisa de conclusão desta primeira parte, com base nos principais estudos sobre homossexualidade na América Latina e Caribe, assim como em monografias antropológicas e históricas consagradas a diferentes culturas desta região, enumero a seguir a lista das etnias indígenas brasileiras, do passado e do presente, sobre as quais há evidência arqueológica, histórica, etnográfica ou lingüística, comprobatória da prática do homossexualismo: Boróro, Tupinambá, Guatos, Panaré, Wai-Wai, Xavante, Trumai, Tubira, Guaicuru, Xamico, Kainagaig, Nambiquara, Tenetehara, Yanomani, Mehinaku, Camaurá, Cubeo e Guaiaquil.Podemos observar também que, na nossa cultura, a idéia do homoerótico como feminino tem raízes na nossa cultura indígena. Muitas vezes, quando pensamos no relacionamento homoerótico, pensamos em quem é a mulher da relação? Quem é o passivo? Quem manda? Semelhantemente as estes achados antropológicos de nossa cultura indígena.

6.2             Repressão aos homossexuais na América Latina colonial

Raça sobre a qual pesa uma maldição e deve viver na mentira e no perjúrio, visto que sabe ser tido por punível e vergonhoso, por inconfessável, seu desejo, o que faz para toda criatura a maior doçura de viver.
Marcel Proust, 1921

Apesar de o homossexualismo ser considerado pela Cristandade como “o mais torpe sujo e desonesto pecado”, punida como crime hediondo equivalente ao regicídio e à traição nacional, merecedores os homossexuais da pena de morte na fogueira, não obstante tamanho tabu e discriminação, à época das grandes descobertas, floresceu na Península Ibérica intrépida e heróica subcultura gay — em algumas partes mais visível e ousada do que a existente em países europeus fora da esfera inquisitorial.
Malgrado os escritos dos missionários e primeiros cronistas contra os índios praticantes do “mau pecado”. A despeito da perseguição desencadeada pelos conquistadores e autoridades contra tal crime — lembremo-nos do cruel genocídio praticado por Vasco Balboa, em 1513, o qual, no istmo do Panamá, encontrando numerosos nativos homossexuais, prendeu 40 deles que foram devorados por cães ferozes, conforme narra Pietro Martire e retrata dramática gravura da época. E apesar da violenta perseguição homofóbica capitaneada pela Inquisição, o certo é que, desde os primórdios da colonização, sodomitas europeus encontraram no Novo Mundo espaço privilegiado para a prática do homossexualismo.

A extensão e isolamento dos novos territórios, a nudez e maior liberdade sexual dos nativos e escravos, a frouxidão moral dos muitos desclassificados sociais que vieram arriscar a sorte nas Américas, ou para cá foram degredados, são fatores que facilitaram a propagação da homossexualidade nas novas conquistas.
Acrescente-se ainda outro elemento facilitador da homossexualização, notadamente da América portuguesa: 18% dos sodomitas condenados ao degredo pelo Tribunal do Santo Ofício de Lisboa foram enviados para o Brasil, a maior parte deles reincidindo aqui no chamado “vício italiano”.
Salvo erro, o primeiro sodomita público e notório a pisar nas Américas de que temos notícia foi o jovem português Estêvão Redondo, criado do governador de Lisboa, D. Manoel Telles, que arribou em Olinda, no Nordeste brasileiro, em fevereiro de 1549, “degredado para sempre”.

Em 1558, é a vez do cirurgião Felipe Correia, inveterado fanchono com nítida tendência ao cross-gender, ser degredado para o Brasil: “Tinha fama de mulherigo por suas falas e jeitos, bufarão e paciente.

Estabelecida em 1536, a Inquisição Portuguesa nunca conseguiu instalar um tribunal autônomo em terras brasileiras, diferentemente do que ocorreu com o Santo Ofício Espanhol, que, desde 1571, inaugurou tribunais no México e Peru, e, em 1610, em Cartagena de Índias, no litoral colombiano.

Infelizmente, ainda não foi realizado um inventário de todos os homossexuais latino-americanos presos e processados por estes tribunais de Santa Inquisição. Temos notícias que já em 1548 foram registrados sete casos sodomia na Guatemala. Dentre estes, o do diácono Juan Altamirano e seu cúmplice, frei José de Barrera, além de um índio, Juan Martin, que, ao ser encaminhado para a fogueira, foi salvo devido a um distúrbio provocado por quatro clérigos e outros civis.
Levantamentos parciais informam sobre a prisão de 19 sodomitas no México, em 1658. Nada consta nas principais obras sobre a atuação inquisitorial no Peru e Chile no tocante ao abominável pecado de sodomia. É sobre o Brasil que conseguimos localizar o maior número de registros documentais, permitindo reconstituir, com abundância de detalhes, as principais características da vivência homossexual dos colonos a partir dos finais do século XVI.
Vimos que, entre 1591-1620, de um total de 283 culpas confessadas nas duas visitacões que o Santo Ofício Lisboeta fez a diferentes Capitanias do Nordeste brasileiro, há registro de 44 casos de sodomia (15,5%), sendo, depois da blasfêmia, o desvio mais freqüentemente praticado pelos colonizadores.

Dos denunciados, 61% eram brancos, 24% mestiços de variados fenótipos, 9% negros e 6% índios, predominando as relações sodomíticas entre parceiros de diferentes cores, os quais ocupavam toda gama de profissões: de governador geral do Brasil, como Diogo Botelho, a sacerdotes, senhores de engenho, funcionários públicos, militares, estudantes, feitores, criados, escravos etc. 

Tais relações entre homossexuais de cores e classes diferentes, e muitas vezes antagônicas, nem sempre refletem a mesma lógica da dominação senhorial heterossexista, pois há vários exemplos de índios e negros que desempenharam o papel ativo, quer na iniciativa da sedução, quer na própria relação copulativa, conforme Mott demonstrou em seu trabalho “O sexo cativo: alternativas eróticas dos africanos e seus descendentes no Brasil escravista”.
Após levantamento nas mais de quatro mil denúncias e nos 400 processos de sodomia arquivados na Torre do Tombo, de Lisboa, Mott localizou, até o presente, 283 denúncias de brasileiros ou portugueses, residentes no Brasil, infamados de praticarem o pecado de Sodoma. Destes, 32 foram processados, sendo 11 condenados a remar nas galés del Rei, alguns por cinco anos, outros para “galés perpétuas”; seis foram degredados para áreas remotas da colônia ou para África.
Embora nenhum sodomita do Brasil tenha sido condenado à morte na fogueira, há registro da execução de dois homossexuais no Brasil colonial: em 1613, em São Luís do Maranhão, por ordem dos invasores franceses, instigados pelos missionários capuchinhos, um índio Tupinambá, publicamente infamado e reconhecido como tibira, foi amarrado na boca de um canhão, sendo seu corpo estraçalhado com o estourar do morteiro, “para purificar a terra de suas maldades”.
Em 1678, um segundo mártir homossexual é executado na Capitania de Sergipe del Rei: um jovem negro, escravo, “foi morto de açoites por ter cometido o pecado de sodomia”.  Conforme já referimos, “o amor que não ousava dizer o nome” teve seus adeptos em todas as classes, raças e etnias do Brasil Colonial, sendo praticado tanto nas mansões senhoriais como nos casebres de escravos e livres pobres; nas casernas, igrejas e mosteiros masculinos e femininos; e nas zonas rural e urbana; incluindo tanto interações esporádicas e fortuitas, com diferentes parceiros, quanto relações estáveis, algumas por décadas seguidas.

Da mesma forma, índios já batizados, vivendo nos arredores dos primeiros núcleos coloniais do Brasil, são apontados como sodomitas, assumindo alguns ofícios e posturas geralmente atribuídas ao sexo frágil, outros acusados de “viverem como marido e mulher, como se amancebados fossem.”

6.3             Gays e lésbicas latino-americanos hoje

Com o fim das inquisições portuguesas e espanholas, também na América Latina são extintos os Tribunais do Santo Ofício: em 1820, no Peru e México; em 1821, Cartagena e no Brasil. Extingue-se o monstrum horribilem.

[21] mas, infelizmente, como mentalidades não se mudam por decreto, até hoje persiste na América Latina o espectro inquisitorial não apenas na ideologia moralista e intolerante, como na composição das elites locais, cujas cepas mais tradicionais, em muitas áreas, descendem ainda hoje, diretamente, dos terríveis familiares e comissários do Santo Ofício.

Diversos países latino-americanos, dentre eles o Brasil, com a independência, por inspiração modernizante do Código Napoleônico, descriminalizaram a sodomia, deixando de constar nos novos Códigos Penais, muito embora persista entre nós forte preconceito e discriminação contra os praticantes desta variante amorosa.
Sob alegação de atentado ao pudor ou prática da prostituição, incontável número de homoeróticos continuam a ser chantageados, encarcerados e torturados pelos agentes da nova ordem policial. Apesar de muitos médicos e cientistas trabalharem por retirar os “invertidos sexuais” das delegacias e prisões, para tentar sua cura em seus ambulatórios e clínicas, na qualidade de cães de guarda da moral oficial, estes doutores, no afã de regenerar tais desvios, adotaram, às vezes, modernas formas de violência.Torturaram os sujeitos com terapias dolorosas, que chegaram a incluir choques elétricos, doses de hormônios e perigosos produtos químicos

Suicídio, clandestinidade total, baixa auto-estima, marginalidade e assassinatos passaram a ser o pão de cada dia de milhares de homoeróticos latino-americanos, rechaçados dentro de suas próprias famílias, humilhados nas ruas, barrados no acesso ao trabalho.
Pesquisas levadas a cabo no Brasil, país considerado um dos menos homofóbicos da América Latina, revelam que, dentre todas as minorias sociais, as de gays e lésbicas são as mais odiadas, ódio manifesto num continuum que inclui o insulto verbal, o tratamento depreciativo nos meios de comunicação, a violência física nas ruas, prisão arbitrária e assassinatos.

No México, até hoje os gays são apelidados de cuarenta e uno, em alusão aos 41 maricones presos numa só noite no ano de 1901, os quais foram submetidos a humilhantes castigos, obrigados a varrer as ruas da capital e lavar as latrinas públicas. Também na Argentina, nos anos 30, as festas reunindo homossexuais terminavam muitas vezes com a chegada imprevista da polícia, sobretudo na época em que era mais urgente a limpeza periódica dos vidros da chefatura, tarefa para a qual os vigilantes elegiam sempre aos maricas, obrigados então a entregar-se com trapos, sabão e água ao feminino porém nada agradável trabalho.

[22]Nos últimos anos, a imprensa vem noticiando repetidamente o homicídio de centenas de gays, travestis e lésbicas no México, Colômbia, Equador (63) e sobretudo no Brasil, onde há documentação comprovando que, nos últimos 15 anos, mais de 1.200 homossexuais foram violentamente assassinados, vítimas de crimes homofóbicos, perfazendo uma média de um assassinato de homossexuais a cada cinco dias.
Para reagir contra este verdadeiro genocídio, e contra as não menos cruéis discriminações de que são vítimas mais de 10% dos latino-americanos homoeróticos — em sintonia com o reconhecimento internacional de que a homossexualidade não é doença nem desvio, mas uma orientação sexual tão legítima, normal e saudável quanto a heterossexualidade ou a bissexualidade —, alguns anos após a famosa rebelião gay ocorrida em Nova York, em 1969, considerada o marco inicial e símbolo do moderno movimento homossexual internacional, também na América Latina gays e lésbicas vêm se organizando para ter os mesmos direitos humanos dos demais cidadãos.

O estudo da etno-história da homossexualidade na América Latina desde os tempos pré-colombianos até à atualidade revela-nos de um lado o preconceito irracional e cruel contra uma minoria social, os gays, lésbicas e travestis, cuja identidade existencial e expressão afetivo-sexual foram secularmente considerados os mais graves pecados e o crime mais hediondo, ambos merecedores da pena de morte.Ao resgatar esta micro-história tão marcada pela intolerância e violência, três são nossos objetivos:

1º — Quebrar o silêncio e desmistificar o tabu que ainda hoje persiste vis-à-vis a homossexualidade, tornando-a tema sério merecedor de mais estudos e pesquisas pelas diferentes áreas do conhecimento científico. 

2º — Abordando a evolução da homossexualidade masculina e feminina neste meio milênio de história latino-americana, tivemos como escopo demonstrar a universalidade temporal e espacial desta manifestação humana, avançando no conhecimento empírico de certas áreas culturais até então pouco divulgadas nos meios acadêmicos; e,

3º — Demonstrar que a homofobia, assim como o racismo e o machismo, são frutos das matrizes culturais que se exarcebaram em nosso continente em grande parte como resultado de nosso triste passado escravista, e, como tal, emergem como facetas de uma ideologia perversa e desumana, que só poderá ser superada através das luzes da ciência e pelo bom senso dos códigos internacionais de direitos humanos.
Apesar do quadro ainda sombrio e das freqüentes violações dos direitos de cidadania dos homossexuais latino-americano, tudo nos leva a crer que dias melhores começam a brilhar para tal minoria social: até os inícios do século passado, quando da extinção do Santo Ofício da Inquisição, a homossexualidade era crime condenável à morte em todo continente latino-americano. Hoje, a América Latina caminha em sentido inverso: à imitação do que ocorre há décadas nos mais civilizados países do primeiro mundo, no Brasil, em 73 Municípios e em três Estados da Federação, as constituições locais proíbem expressamente qualquer discriminação baseada na orientação sexual. Ontem, era crime ser homossexual. Agora, o crime é discriminar o homossexual.

Importante lembrar que instituições governamentais como o INSS reconhecem o direito à pensão e saúde ao companheiro ou à companheira homossexual. Planos de saúde como, por exemplo, da Caixa Econômica Federal, dentre outros, também os reconhecem como dependentes. Juizes já autorizam a troca de nome nos transgêneros quando passam pela operação de reconstrução sexual. Também autorizam a adoção por casais gays masculinos ou femininos, guarda de filhos oriundos de relacionamentos heterossexuais etc.

A mudança de aceitação inicia-se no seio da sociedade. Já há novelas com a temática. A Passeata Gay, em São Paulo, com mais de um milhão de participantes, mostra a participação popular destes eventos. Cidades pequenas, como Juiz de Fora (Minas Gerais), Cariacica (Espírito Santo) e outras também têm suas passeatas e manifestações de grupos organizados, mostrando aos formadores de opinião e aos responsáveis por políticas públicas a necessidade de considerarem os direitos e a aceitação social deste grupo que a cada dia torna-se mais participante de nosso cotidiano.

 7                 Construção do Casamento 

7.1             O casamento

A escolha de uma pessoa passa por motivações conscientes e inconscientes. Conscientes, quando se procura alguém, por exemplo, para compartilhar os problemas ou buscar a perpetuação, expectativas sociais bastante comuns na nossa sociedade. Já as motivações inconscientes regem com muita força estas motivações conscientes. Elas levam ao seu desejo, o desejo de encontrar alguém, em ser igual a todo mundo. Isso está implícito na busca e na postura para se atingir estes objetivos supostamente inconscientes.

A autora Iara Anton,

[23], nesta sua obra, revela que a felicidade do casamento não se encontra no acaso e não é motivada por forças do além. “Determinadas posturas e adoções feitas ao longo da vida sofrem marcantes influências dos fatores internos fora do alcance da consciência.”16 Ela enfatiza que o homem é o autor de sua própria história. Como Jean Paul Sarte — que disse: “O homem não tem desculpas.” —, nós escolhemos, de maneira inconsciente ou não, nossos próprios caminhos.

Na perspectiva do inconsciente, observo que este inconsciente não é aquele do modelo psicanalítico, em que o individuo não tem conhecimento sobre determinada coisa — conteúdos internos que somente estarão à sua disposição a partir do auxilio de um profissional da psicanálise.

Falo de uma construção que, ao longo de nossa história, aprendemos com a família desde criança, e que é a base de como nos relacionamos com as pessoas à nossa volta. Em paralelo a isso, valores de cultura, parâmetros da educação, influências da mídia etc. geram milhares e milhares de signos que vão nos influenciando e construindo nossa maneira de ser e de pertencer ao mundo.

Como isso se dá de forma branda, desde muito cedo, e pertencente ao senso comum, crescemos acreditando que tudo que está posto é natural e, então, nossos comportamentos e escolhas parecem ser inconscientes. Estes valores são emitidos e recebidos como microssinais que, por serem sutis, parece-nos inconscientes, mas não são. São facetas vividas e experienciadas por nós ao longo da vida desde a infância até o sempre. São estes microssinais que nos fazem acreditar que aquela pessoa é o grande amor de nossas vidas.

É a pessoa que tem a química conosco. Esta pessoa emitiu sinais não muito claros, “inconscientes”, que o outro decodificou como algo muito bom, positivo. Isto é importante para compreendermos estas “pulsões inconscientes” da busca do outro. Este aspecto também explica o chamado “amor à primeira vista” que ilude tantas relações e constrói casamentos sobre bases fantasiosas e pouco consistentes.
O casamento, enquanto instituição como conhecemos, é recente. Ele remonta à Idade Média. Mas, como união entre macho e fêmea, é da época dos primeiros agrupamentos humanos. O humano, por ser uma criatura muito frágil em comparação com os outros animais, desenvolveu uma relação gregária para sobreviver.

Nossa evolução deve muito a essa capacidade de nos agrupar e, como em todos os mamíferos, o mais forte, ou o líder, elege a fêmea — preferencialmente a mais fértil e saudável — que será sua companheira, mesmo que exista a poligamia. O homem também prefere outro homem por ser mais viril forte,  capaz de ajudar ao outro a sobreviver melhor obtendo melhores recursos.

Eleger outro macho, mesmo que se tenha que colocar-se no lugar da fêmea, é uma forma tão antiga quanto os agrupamentos humanos. Não sabemos por que se necessitava de travestir-se de fêmea para ocupar este espaço na comunidade humana primitiva. Acredita-se que o sistema de reprodução deveria ser muito importante para os grupos humanos, uma vez que a morte infantil era uma constante e a fêmea ocupava um lugar de destaque cuidado da prole, criando alguns animais e desenvolvendo a agricultura.

Hoje, vemos homens procurando outros homens com porte físicos bem desenvolvidos, bem situados economicamente ou culturalmente, tendendo a uma diminuição das diferenças, ou associando-se a jovens carentes para poder exercer o domínio da superioridade financeira ou intelectual.

A necessidade do outro se deve ao fato de desenvolvermos nosso eu a partir da existência do outro. O outro nos dá a certeza do ser, nos coloca em confronto, faz com que possamos existir como um ser social. A criança, antes de saber que é alguém, se relaciona com os pais e estes é que é sua referência para ela se fazer no mundo. São os pais que nomeiam os objetos e os apresentam à criança.
Precisamos, assim, sempre, de ter alguém para compartilhar a vida. Por isso a busca de alguém é tão intensa, seja nas relações homo ou heterossexuais. Segundo Iara Anton, “o outro é este ponto de referência indispensável para a conservação da percepção lógica e organizada de si mesmo”.

. [24] Quando estivermos falando de relacionamento, estaremos falando de qualquer tipo, homo ou heterossexuais, para não discriminarmos e para agregar a idéia de que todo encontro amoroso é um relacionamento.
Observamos, junto aos entrevistados, que, mesmo estando sozinhos, casados ou não, morando só ou com o companheiro, todos necessitam saber que têm alguém. Alguém com que podem contar ou alguém com quem sonhar. Alguém com quem ele tenha compromisso. Vejamos alguns exemplos:

Entrevistado Geraldo, 40 anos:

Não importa a orientação sexual. O valor é da vida é a união. Vontade de construir uma vida, de acordar junto.
Novamente com o entrevistado David, 27 anos:

Necessito ter alguém comigo, uma continuidade no dia seguinte. Sentir-me seguro, ter alguém.
Percebo, em minha prática clínica, que as pessoas, independentemente de suas orientações sexuais, têm muito medo de intimidade, de serem feridas, de correrem riscos. Claro que isto depende de sua história, de dores e alegrias em sua vida. Nas relações homoeróticas, isto é intensificado pelas discriminações que sofrem nos seios familiares ou sociais e no próprio grupo de pares.
Neste grupo, as discriminações partem da cobrança de uma estética, valores sofisticados e refinados, exigências de perfeição e uma forte competição entre os que se chamam de amigos, levando os homens a sentirem-se mais inseguros. Somam-se os medos de intimidade, por saber não pertencer ao mundo social heterossexual, e uma dificuldade de criar um grupo unido entre os de mesma orientação sexual.
Ao criar as defesas nestes mundos, cria-se uma barreira para um contato satisfatório e saudável. Relações com barreiras são impeditivas para uma intimidade salutar. Para formarmos uma dupla, precisamos formar uma intimidade, uma relação de que o outro tenha alguma coisa de próximo, semelhante conosco. E esta semelhança tem a ver com nossas questões pessoais, nossas necessidades, carências e preferências, como citado anteriormente.
A intimidade leva um tempo para acontecer. Não é um encontro mágico como nos livros de estória. Há que se ter singelezas, aproximações suaves e descobertas de similitude entre os seres, saindo daquela relação “eu-tu” para uma relação “nós”. Na relação “eu-tu”, os seres se aproximam, mas não criam intimidade, mantendo relações racionalizadas, superficiais, embora possam ser prazerosas. Nas relações “nós”, os seres criam uma intimidade, uma sensação de pertencimento na vida do outro, ao que os românticos chamam de “amor”.

7.2             O peso das relações

Em nossa cultura, os casamentos heterossexuais são pautados em mitos e crenças do tipo “serão felizes para sempre”, “até que a morte os separe”, dos contos infantis. Assim, a união, em vez de se transformar em uma relação real, de construção para a felicidade de dois, torna-se uma construção fantasiosa, cheia de expectativas do vir a ser. Inclusive com a expectativa de o cônjuge ser parecido ou completamente diferente do progenitor da família de origem.
Este tipo de postura remonta uma imaturidade da própria personalidade. A pessoa imatura tem necessidade de pautar as construções de sua vida afetiva, e até de trabalho, em fantasias, trazendo, via de regra, muitos dissabores e frustrações quando depara com o real.

O já identificado entrevistado David nos diz.

Eu preciso de alguém mais maduro pra ficar comigo, para me segurar. Senão, não agüento as tentações.
A pessoa mais madura, ou em processo de amadurecimento, sabe que há variações no decorrer da vida. Os contratos de fidelidade são baseados em fatos reais e não em mitos. Já os contratos de intimidade passam por outras construções.

 Entrevistado Afonso, 50 anos:

Para mim, o importante é ter lealdade. A fidelidade corporal não é necessária, uma vez que sei que não podemos dominar os desejos do outro, e nem quero isso. Mas gosto de saber que ele é leal, que eu estou com ele e ele, comigo.
A vida não é cor-de-rosa, mas também não é cinza. Há uma infinidade de matizes possíveis. Fixarmos-nos em um deles imobiliza o desenvolvimento da personalidade e o desabrochar de nossas potencialidades amorosas. Não precisamos ter um casamento padronizado, apenas para satisfazer aos anseios sociais em detrimentos de nossas reais necessidades.

Estas necessidades de satisfazer a cultura, como mostra Iara Anton:

Essa leveza idealizada torna-se, na prática, uma bola de chumbo atado aos pés de ambos os prisioneiros. Quando nada, carregam pesados fardos que jamais poderão satisfazer qualquer uma das partes. Casais que se acusam mutuamente por não corresponder as ilusões até então cultivadas.

[25]Penso que toda a dificuldade emocional procede do despreparo que a cultura, em constante e rápida transformação, está nos construindo. A busca pela colocação profissional de sucesso, poder e dinheiro (sonhos) cada vez mais difícil (real) aumenta o stress nas relações. Nos casamentos homossexuais, percebemos uma ausência ou diminuição de um ideal. Não há um conto de fadas gay, uma construção mítica, religiosa, homossexual. Não há uma idealização de sucesso não há uma referência anterior, antiga, aceita culturalmente.

Entrevistado Geraldo, 40 anos:

Não dá para ter um parâmetro da relação heterossexual com papéis de um comandando o outro. Às vezes, existe o comando com chantagens e domínio; outras vezes, não. Hoje, não acredito que estes papéis importados das relações hetero segurem casamentos gays, a não ser que um dos dois seja doente.
Nas relações heterossexuais, há uma história mítica de sucesso. Nossos ancestrais trazem às fotos, os contos, as festas, os desejos de felicidade. Mesmo que muitos casamentos tenham sido marcados por muitas dores e sofrimentos em face às diferenças etárias, aprisionamento e desvalorização da mulher há uma ideologia de felicidade na continuidade destas relações. Há regras e parâmetros para esta felicidade.

Entrevistado Afonso, 50 anos:

Não se tem um modelo social a ser seguido. Vai-se aprendendo à medida que se vai vivendo com a pessoa. As alianças, com a convivência, se afinam ou desafinam. Quando desafinam, procura-se outro.
Nas relações homoeróticas, não há parâmetros, muito pelo contrário. Elas são pautadas pelas incertezas e efemeridades. Há muita competição, inveja, coerente com a posição masculina na cultura de competição e sucesso por conquistar.

Voltamos com o entrevistado Edgar, 32anos.

O homem é criado dentro da idéia de que quanto mais trepadas der na vida mais ele é macho. Sexo então é quantidade, e não afetividade.
Esta busca eterna de que o próximo será o melhor, serei feliz com algo que ainda não conheço, na tentativa de construir um mito heterossexual de felicidade, dificulta o conhecer o outro em sua intimidade, uma vez que o frenesi de conquista não dá tempo para sentir a alma e olhar nos olhos do possível amor.
A falta de literatura, de estudos popularmente divulgados, que possam dar um norte nessas relações, dificulta essa construção. Em um capítulo posterior, abordaremos um texto de um casal gay que pode servir muito como norte para muitos outros casais gays. Contudo, este texto não é amplamente divulgado em livrarias, ficando reduzido a um grupo seleto de membros de ONGs, e não do grande público gay.
Portanto, não temos um padrão do que é ser feliz em um casamento homossexual. Existe muito sexo, pornografia, consumo sexual como algo descartável, erudição, algumas viagens, bares e boates. Na maioria dos sites, os participantes procuram um encontro rápido, fortuito, sem envolvimento, embora o discurso da maioria, como dos nossos entrevistados, diz que querem um relacionamento sério, fiel etc. São os mesmos que dizem que os outros gays não são sérios, são efêmeros em suas relações amorosas, só querem sexo. Nossos entrevistados dizem que as relações não são efêmeras “para mim e meu parceiro”, mas para os outros.

Novamente o entrevistado Edgar:

Penso que 50% dos gays que conheço são de relacionamentos efêmeros porque se preocupam apenas com o físico, com a futilidade.

Na tentativa de construir uma relação duradoura, tentam de tudo: colocam uma segunda pessoa na relação sexual para motivar, fingem que não vêem a infidelidade do outro, caricaturizam atitudes para agradar e fazer rir o companheiro... Enfim, uma série de medidas que dizem, na verdade, é que não sabem como fazer para dar certo. Não tem ninguém que diga como fazer.

As relações homossexuais duradouras, via de regra, são construídas no aprendizado dos dois. Não há uma “receita da Tia Velha”. O que torna efêmeras estas relações, em face de um aprendizado requer muita paciência, grande perseverança e uma certeza de querer aquela pessoa mesmo com os defeitos e as dificuldades deste caminhar.
Voltamos novamente ao que já discutimos sobre a necessidade de uma maturidade emocional para serem possíveis essas construções, sendo que o homem imaturo valoriza o imediato, influenciado pela cultura do novo e do descartável. Percebemos também uma característica narcísica entre os homens homossexuais, dificultando o envolvimento, a entrega para a possibilidade do amar e do ser amado possa vir a acontecer. A personalidade narcísica, dentre outras características, está na dificuldade do ser amar-se verdadeiramente, ficando em um discurso de excesso de auto-estima para encobrir sua tremenda carência e dificuldade de dar para poder receber amor.

7.3             Uma história real de amor gay

Essa é uma historia real, do casal gay Toni e David. Toni, brasileiro, assumido; David, inglês, casado com mulher. Toni estava em Londres para trabalhar e aprender o inglês. David vivia sua homossexualidade de forma clandestina, saindo com rapazes sempre que podia, mas mantendo seu casamento. Encontraram-se em uma estação do metrô londrino, paqueraram. Algumas afinidades e a certeza e maturidade de Toni em suas colocações sobre sua própria vida, fizeram com que David ficasse muito próximo. E começam a namorar de forma clandestina.

Como Toni iria passear pela Europa, e talvez não mais voltasse para Londres, David, ficou transtornado, decidindo romper com seu casamento e assumir o namoro com Toni (sair do armário). Foi morar com Toni em péssimas condições de conforto, entre imigrantes, homossexuais, casais etc. Esta diversidade de culturas e hábitos, apesar de surpreender David, une mais o casal.

Os dois viajam pela Europa afinando suas necessidades, estreitando seus conhecimentos e suas diferenças culturais e lingüísticas, uma vez que Toni ainda não falava fluentemente o inglês. Antes de embarcarem para o Brasil, os dois vão à casa dos pais de David, mas ele não consegue falar para eles que estão namorando e que vão morar junto no Brasil. Segundo Toni, o pai de David percebeu rapidamente o que estava acontecendo, mas a mãe dele não.

Por serem de diferentes culturas e idiomas, o diálogo sempre foi o mais importante para eles afinarem as diferenças. Gostam sempre de lembrar que “não são carne da mesma carne”

[26], como é comum ouvirmos de casais heterossexuais. Aconselham aos casais gays que, em uma briga — sempre irão acontecer —, não se deve acusar o outro “tirando coisas do passado”. Devem-se colocar os sentimentos e parar para ouvir o outro. Saber ouvir valoriza o companheiro e evita ressentimentos.

Outro aspecto assinalado é que em um relacionamento gay é imprescindível que ambos aceitem sua homossexualidade. Muitas vezes as brigas surgem por não haver a aceitação da condição e, em um mecanismo de defesa, um agride o outro por não se aceitar. David, que foi casado com uma mulher, relata que, comparando as duas relações, ele não vê diferenças. As dificuldades nos relacionamentos, as dificuldades financeiras, os cansaços, tudo é muito semelhante.O que difere mais é que, por sermos gays, não temos as cobranças do mundo heterossexual, como filhos, propriedade etc. Vivemos mais o presente, nossos prazeres e também que, por sabermos que encontrar alguém é difícil, fazemos mais força para darmos certo.

[27]
Semelhante ao nosso entrevistado Afonso, que diz que fidelidade é diferente de lealdade, David e Toni optaram pela fidelidade de princípios e não pelos princípios de fidelidade. Por exemplo: não aceitam amantes individuais ou relação paralela e possibilidade de sexo sem ser seguro. Contudo, sabem que não podem mandar na vida do outro e que é muito difícil satisfazer completamente a outra pessoa. A relação deles não é baseada no corpo ou no sexo, mas nas múltiplas possibilidades que a vida apresenta a ambos, como o companheirismo, projetos de trabalho, sonhos de vida etc.

Podemos observar, com esta história e com os relatos de nossos entrevistados, que as relações homoeróticas são semelhantes às dos heterossexuais, com diferenças apenas no modo de expressar, e não no gênero. Amam, brigam, têm sonhos, almejam projetos e muito medo de não darem certo, de voltarem a viver sozinhos. O preconceito e a discriminação social são os fatores que mais pesam no relacionamento, dificultando a socialização, aceitação e construção de felicidades de seres iguais a todos os outros com mesmos direitos e deveres no amor e na sociedade.

3.4             Aspectos legais do casamento homoerótico no ocidente

Esta temática tem sido objeto de discussões em vários países do Ocidente, principalmente naqueles identificados como de Primeiro Mundo. O termo casamento tem uma conotação de sacramento religioso, autorização de instituições religiosas com o intuito de unir fiéis, promovendo a reprodução e a manutenção de mais fiéis em suas instituições. Este aspecto não tem sido discutido em função da força e lentidão de mudança nas doutrinas da fé. O que tem sido muito discutido é o direito civil. O direito de compartilhar bens, previdência social pública ou privada, herança etc., comum nas uniões heterossexuais.

No Parlamento Europeu, há uma estratégia para se consolidar os direitos da união civil em todo território europeu, mesmo nas nações que ainda não reconhecem este direito. Por exemplo: se um casal gay casa na Holanda, onde é permitido, tem os mesmos direitos na Itália, aonde ainda não é aceito. É uma tarefa árdua, uma vez que os direitos civis, pela Constituição da União Européia, são legislados independentemente pelos membros que compõem o grupo. É uma luta a que vamos assistir.

Em 1989, a Dinamarca foi o primeiro país a legalizar esta união, embora a palavra casamento ainda não esteja incluída na legislação. Na França e na Itália, que ainda não reconhecem esta união, criou-se uma estratégia que seria o Pacto de Civil de Solidariedade, permitindo aos casais posse sobre herança, sucessão em contratos de aluguel e direitos de aposentadoria. Mas a adoção de crianças ainda gera polêmica.

Na Espanha, existiam partes do território que reconhecem a união civil e outras, não. Mas, em julho de 2005, entrou em vigor um projeto do Governo dando aos casais os mesmos direitos dos heterossexuais, inclusive o da adoção de filhos. É importante frisar que, mesmo com esta lei, encontram-se casos de magistrados impedindo a união, o casamento em cartório de casais homoeróticos, alegando que ainda persiste na Constituição o código anterior que impedia tal ação. No Canadá, autoriza-se a união civil gay, mas não o divórcio. Uma contradição.

No Brasil, ainda estamos longe de uma discussão séria em nosso Parlamento. As bancadas religiosas são fortes em número e em negociações, impedindo o andamento do processo que já está na Câmara há muitos anos. Contudo alguns passos já foram dados. O INSS reconhece o direito previdenciário a pessoas do mesmo sexo. Os planos de saúde de algumas instituições aceitam o parceiro ou a parceira gay como dependente.

Na cidade São Jose do Rio Preto, localizada no interior do Estado de São Paulo, os transgêneros — aqueles que fizerem cirurgia para mudar o sexo biológico — têm conseguido alterar esta informação na Carteira de Identidade. A Corregedoria do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul autoriza os cartórios a promover a união entre casais homossexuais.

Em Curitiba, um casal homoerótico masculino conseguiu assinar em cartório o Termo Comprobatório da Convivência Marital, permitindo a um dos cônjuges (estrangeiro) ficar legalizado no Brasil. O Tribunal Superior Eleitoral reconheceu a legitimidade da união homossexual estável. Por isso, impugnou a eleição de Maria Eulina, no Pará, por ela ter uma relação amorosa estável com a atual prefeita da cidade onde moram, Astrid Maria Cunha e Silva. Muito tem que se andar, mas já é um começo.

Apresentaremos a seguir quadros demonstrativos e atualizados sobre a situação das uniões homossexuais que nos dará uma visão das mudanças legais e porque não dizer sociais frente a um assunto ainda tão controverso.

Quadro I – Países que reconhecem o casamento gay — 2005[28]

País

Data

Situação

Holanda

2000

Permite o casamento e a adoção de crianças.

Bélgica

2003

Permite o casamento.

Espanha

2005

Alterada a Constituição para permitir o casamento e a adoção de crianças.

Canadá

2005

Permite o casamento.

 Quadro II – Países que reconhecem a união gay, mas não o casamento de fato — 2005[29]

País

Data

Situação

Dinamarca

1989

União legalizada.

Mesmos direitos de moradia, pensão e imigração.

Noruega

1993

Permite o registro da união e lhe dá quase os mesmos direitos dos casais heterossexuais.

Suécia

1994

Aprova a união gay. Proíbe adoção. Discute-se a possibilidade do casamento integral.

Hungria

1999

Estende os direitos tradicionais.

Discute-se o casamento.

Islândia

1996

Reconhece apenas a união.

Austrália

2001

Reconhece apenas a união.

Alemanha

2002

Reconhece apenas a união.

Bélgica

2003

Reconhece apenas a união.

Irlanda

 

Reconhece apenas a união.

Finlândia

 

Reconhece apenas a união.

Chipre

 

Reconhece apenas a união.

Áustria

 

Reconhece apenas a união.

Suíça

 

Através de um plebiscito, aprovou a união de pessoas do mesmo sexo.

 Na grande maioria dos países chamados desenvolvidos, a união é aceita e, em alguns, outros direitos foram dados aos homoeróticos. Percebe-se claramente um processo de evolução nestes direitos e provavelmente em todo bloco europeu os direitos iguais serão atingidos

Quadro III – Pesquisa realizada pelo Instituto Futura de Vitória — ES — 2005[30]

 1 — Se houvesse um plebiscito para legalizar o casamento homossexual, qual seria a sua posição?

Opções

Masculino

Feminino

Total (%)

Contra

63,35

57,89

60,50

A favor

34,03

38,76

36,50

Não sabe/Não respondeu

20,62

3,35

3,00

Total

100

100

100

2 — Por quê?

Opções

Masculino

Feminino

Total (%)

Não é correto

15,18

18,66

17,00

Cada um faz o que quer

10,99

12,44

11,75

Religião não permite

10,99

9,09

10,00

 Esta pesquisa foi feita com amostras aleatórias nas ruas da cidade. É importante frisar que as opiniões dadas a um entrevistador, com uma prancheta na mão, nas ruas da cidade, podem gerar uma resistência em expressar o real pensamento, passando o entrevistado a demonstrar o que seria social e politicamente correto de se falar.

Penso que, se fosse uma pesquisa com respostas secretas, poderíamos ter outros dados. Contudo, não acredito como pesquisador e como psicólogo, que, na nossa comunidade, teríamos diferenças tão significativas. Mas, de todo modo, como o homem tende a ser mais conservador e tradicional sobre as relações amorosas e sexuais de outras pessoas, observamos que estes mostram uma maior rejeição à união gay do que as mulheres.

Com estes dados, podemos inferir o quanto ainda é difícil que tenhamos em terras tupiniquins mudanças na legislação e nas atitudes dos governantes em relação à união homoerótica. Penso que mudanças poderão acontecer de cima para baixo, com a legislação e a jurisprudência vindas do Supremo Tribunal ou do Congresso Nacional para chegar aos Estados e cidades do Brasil.

 8                 Conclusão

As uniões afetivas, independentemente do sexo do parceiro, são situações construídas nas possibilidades dos desejos e também na maneira como cada um dos pares pensam sobre relacionamentos e trazem de suas famílias de origem cultura valores, sinais e ritos.
Enfim, a construção de um relacionamento não é pautada apenas por um amor romântico ou por mitos tais como “até que a morte os separe”, “serão felizes para sempre”. Ela se dá pela vontade individual, e esta vontade é perpassada por esta mesma cultura, mitos e ritos de uma sociedade: vontade de ter alguém para compartilhar, para ter coisas boas, satisfação sexual, dividir a sobrevivência, construir e ser construtor do mundo como vivemos e conhecemos.
O relacionamento homossexual não é diferente por ser homossexual. O que percebemos, nas entrevistas e conversas informais com os entrevistados e nos referenciais teóricos apresentados, é que os ideais românticos, os valores de fidelidade, lealdade, continuidade e de construção de idéias de família de nossa cultura permeiam a idéia da construção da união homoerótica.

As diferenças existem, uma vez que temos dois homens amando-se, ambos construídos com os valores da masculinidade ocidental. Não tendo a contrapartida da afetividade feminina, há outras afetividades e possibilidades amorosas. As semelhanças estão na intenção do desejo, na busca dos mesmos valores e ideais.

Observamos que mesmo em entrevistados jovens ou não, cultos ou não do ponto de vista da educação formal, todos têm a mesma demanda. Alguns são mais românticos ou sonhadores, como os mais jovens, que nutrem crenças de fidelidade, amor eteno, viver somente um para o outro, viver sempre junto, semelhante aos jovens heterossexuais de nossa cultura.

Isso já não observou nos homens mais velhos, que passaram por varias experiências e que conhecem outros valores para a construção da afetividade, tais como companheirismo, lealdade, segurança, parceira. Fidelidade de corpo não é tão forte no sentido de ser dono do outro do outro.

Podemos observar neste trabalho que o ideal de ter e buscar alguém para compartilhar a vida é um ideal humano, independentemente do sexo ou da orientação sexual que temos. Em face disso, é uma injustiça social e moral a sociedade heterossexual impedir que pessoas com a mesma orientação sexual tenham os mesmos direitos legais e de expressão de sua amorosidade.

Lembremos que, em séculos anteriores, beijar a boca de uma mulher na rua, mesmo sendo casados, era um ato de imoralidade passível de crime, o chamado atentado ao pudor. As necessidades sociais tornaram-se outras e hoje temos uma diversidade de famílias, costumes afetivos e, sexuais tão heterogênicos como a própria sociedade. Por que não, então, começarmos a repensar nossas ações sociais em função de uma melhor aceitação das necessidades amorosas dos homens que amam homens?

 9                 Glossário de Termos Homoeróticos

Extraído da obra Mix Brasil – Manual para jornalistas e redatores, elaborado pela ONG Pró-conceito de Gays e Lésbicas

Assumir-se, ou, por extensão,  assumido ou assumida

Processo de auto-aceitação que pode durar a vida inteira. Constrói-se uma identidade de lésbica, gay, bissexual ou transgênero (consultar termos) primeiramente para si mesmo, e, então, isso pode ser ou não revelado para outras pessoas.

Bissexual

Indivíduo amorosamente, fisicamente e espiritualmente atraído tanto por homens quanto por mulheres. Bissexuais não precisam ter tido experiências sexuais equivalentes com homens e mulheres. Na verdade, não precisam ter tido qualquer experiência sexual para se identificarem como bissexuais. 

Casamento gay

Utilizar este termo somente para descrever uniões religiosas entre pessoas do mesmo sexo, prática adotada, por exemplo, por algumas igrejas protestantes e religiões não-cristãs. Embora a expressão em si não esteja propriamente incorreta para descrever uniões legalizadas entre homossexuais com direitos idênticos aos assegurados ao casamento civil heterossexual - caso da legislação holandesa - a palavra casamento, em nossa cultura, remete fortemente à instituição do matrimônio religioso, e o termo ”casamento gay” freqüentemente é utilizado de maneira inadequada.

 • Cross-dresser

Termo genérico usado para descrever qualquer indivíduo que se vista com roupas do sexo oposto. Embora também possa ser aplicado para designar os travestis, no Brasil é mais utilizado para descrever transformistas drag queens ou drag kings (consultar termos), indistintamente.

Drag king

Versão “masculina” da drag queen (consultar termo) tata-se de uma mulher que se veste com roupas masculinas, porém, ao contrário da drag queen, não necessariamente com intenções satíricas ou de humor.

Drag queen

Homem que se veste com roupas femininas de forma satírica e extravagante. Uma drag queen não deixa de ser um tipo de transformista (consultar termo), pois o uso das roupas está ligado a questões artísticas. A diferença é que a produção necessariamente focaliza o humor, o exagero. Embora a maior parte das drags queens sejam homossexuais, não há uma relação necessária entre esta atividade, que pode ser vista como profissional, e a orientação sexual do indivíduo.Termos relacionados: cross-dresser, Drag king, transformista

 • Enrustido ou enrustida

Designa, geralmente de forma pejorativa ou depreciativa, o indivíduo que não admite sua orientação afetivo-sexual, freqüentemente nem para si próprio. Termo adequado: não-assumido.

Entendido ou entendida

Gíria que denota a condição de gay ou lésbica.

 • Gay

Termo usualmente empregado para descrever homens atraídos amorosamente, fisicamente e espiritualmente por outros homens. O termo também pode ser usado num sentido coletivo, para descrever toda a comunidade GLBT (consultar termo).

 • GLBT

Acrônimo para “gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros”, utilizado sobretudo na esfera política e por incluir o maior número de pessoas na comunidade. A ordem das letras pode aparecer alterada, como em LGBT.

Termo relacionado: GLS

GLS

Acrônimo para “gays, lésbicas e simpatizantes”, que se popularizou por designar, numa única sigla, não só os gays e lésbicas, mas também aqueles que, independentemente de orientação sexual, são de algumas formas solidários e abertos em relação à sua luta e/ou maneira de ser.GLS também é utilizado num sentido cultural, para descrever as atividades comuns a este grupo de pessoas.

Termo relacionado: Simpatizante

Heterossexismo

Atitude condizente com a idéia de que a heterossexualidade (consultar termo) é a única forma válida de orientação sexual. Assim, o heterossexista tende a discriminar gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros com base em sua orientação sexual, seja de maneira agressiva ou violenta, seja de maneira “sutil” ou “cordial”. O termo é utilizado na mesma acepção que caracteriza as palavras racismo e sexismo.

Termo relacionado: Heterocentrismo

Heterossexual

Indivíduo amorosamente, fisicamente e espiritualmente atraído por pessoas do sexo oposto. Heterossexuais não precisam ter tido experiências sexuais com pessoas do outro sexo. Na verdade, não precisam ter tido qualquer experiência sexual para se identificarem como heterossexuais.

Homossexual

Termo utilizado para descrever gays e lésbicas (consultar termos), indistintamente.

Homoafetivo, e seu substantivo homoafetividade

Adjetivo cunhado para descrever a atração afetiva e sexual entre pessoas do mesmo sexo. Este termo é sinônimo de homoerótico e homossexual, e sua vantagem é conotar também os aspectos emocionais e espirituais envolvidos na relação amorosa de gays e lésbicas.

Termos relacionados: Homoerótico e Homossexual

Homoerótico, e seu substantivo homoerotismo

Adjetivo cunhado com o objetivo de conotar não só o aspecto físico da relação entre pessoas do mesmo sexo, mas o envolvimento emocional e sensual desta relação. Assim como homoafetivo, não é usado para descrever pessoas, mas aspectos relacionados à relação homoerótica.

Termos relacionados: Homoafetivo e Homossexual

Homofobia

Embora a etimologia da palavra aponte para o significado que denota medo mórbido em relação aos homossexuais (gays e lésbicas), o termo passou a ser empregado para descrever a rejeição ou aversão a estes indivíduos e à homossexualidade (consultar termo), conforme já registram os recentes dicionários. A postura homofóbica, desta forma, freqüentemente se manifesta em ações discriminatórias, não raro violentas, que apontam para um ódio gratuito baseado unicamente na orientação sexual do outro.

• Lésbica

Mulher que é atraída amorosamente, fisicamente e espiritualmente por outras mulheres. Lésbicas não precisam ter tido experiências sexuais com outras mulheres. Na verdade, não precisam ter tido qualquer experiência sexual para se identificarem como lésbicas.

• Misoginia

É o chamado ódio ou receio das mulheres.

• No armário

Termo originado do inglês que denota um indivíduo que não divulga sua orientação sexual e freqüentemente se esforça para que outras pessoas não venham a atestá-la.

• Orientação sexual

Termo mais adequado para referir-se à atração física, emocional e espiritual para pessoas do mesmo sexo ou do sexo oposto, incluindo, portanto, a homossexualidade, a heterossexualidade e a bissexualidade (consultar termos).

• Outing 

Expressão originalmente da língua inglesa, utilizada no Brasil para designar o ato de revelar publicamente a orientação sexual de outra pessoa.

• Parceria civil, ou união civil

Termo usado para descrever as uniões entre pessoas do mesmo sexo reconhecidas legalmente pelo Estado. Existem diferentes níveis de parceria civil quanto aos direitos assegurados, desde as mais simples até aquelas que se constituem de fato em casamento gay (consultar termo), com direitos idênticos aos do casamento civil heterossexual. Em todo o caso, deve-se sempre utilizar o termo parceria civil, reservando casamento à esfera religiosa.

• Simpatizante

Termo que designa o indivíduo destituído de preconceitos e que freqüentemente se simpatiza e é solidário às lutas empreendidas por gays e lésbicas.

Termo relacionado: GLS

• Travesti

Homossexual que se veste e se comporta social e mesmo particularmente como se pertencesse ao sexo oposto.

• Transexual

Indivíduo que tem convicção de pertencer ao sexo oposto, o que pressupõe desejar suas características fisiológicas, muitas vezes obtendo-as por meio de tratamento e cirurgia. Um transexual é aquele cujo sexo biológico não confere com sua identidade de gênero, isto é, o senso pessoal que o indivíduo possui de ser homem ou mulher.

• Transformista

Indivíduo que se veste com roupas do sexo oposto movido por questões artísticas. O transformismo não está relacionado à orientação sexual do indivíduo muito transformistas são heterossexuais e pode ser visto como uma atividade profissional, relacionada ao espetáculo. 

10              Referências Bibliográficas

ANTON, Iara L. Camaratta. A escolha do cônjuge: um entendimento sistêmico e psicodinâmico. Porto Alegre-RS: Artes Médicas Sul, 2000.

BETTELHEIM, B. Uma vida para o seu filho: pais bons o bastante. São Paulo-SP: Editora Summus, 1988. 

BOECHAT, Carlos Filho; CASTRO, Heloisa M. Sexo sem segredo. Rio de Janeiro-RJ: Bloch Educação, 1996.

 ______. Falando de sexo com amor. Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 2000.

BOECHAT, Carlos Filho; TRINDADE, Zeide Araújo. Representações sociais e práticas afetivas masculinas. 2003. Dissertação de Mestrado em Psicologia Social — Curso de Psicologia, Universidade Federal do Espírito Santo — UFES, Vitória-ES.
CARDIM, Alberto. Guerreros, chamanes y travestis. Indícios de homossexualidade entre los

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GANDAVO, Pero Magalhães. História da Província Santa Cruz — Tratado da terra do Brasil (1576). São Paulo-SP: Editora Obelisco, 1964.

LINDENBERG FILHO, Carlos Fernando. GLS: entenda as entendidas. Rio de Janeiro-RJ: Gryphus Editora, 2005.

MASSOTTI, Alda. Emergência seriada da amostra. São Paulo-SP: Editora Pioneira, 2000.

MONEY, J.; TUCKER, P. Os papéis sexuais. São Paulo-SP: Editora Brasiliense, 1981.

MONTEIRO, Aldry Ribeiro. Macho, adulto, branco, sempre no comando. Dissertação
 (Mestrado em Psicologia) — Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília — UnB, Brasília-DF.

MOTT, Luís. Disponível em http://geocities.yahoo.com.br/luizmottbr/artigos06.html.  Acessado em 25 de outubro de 2005.

NOLASCO, Sócrates. O mito da masculinidade. 2ª ed. Rio de Janeiro-RJ: Rocco, 1995.

__. De Tarzan a Homer Simpson: banalização e violência masculina em sociedades contemporâneas ocidentais. Rio de Janeiro-RJ: Rocco, 2001.

PARKER, Richard G. Corpos, prazeres e paixões — A cultura sexual no Brasil contemporâneo. São Paulo-SP: Editora Best Seller, 1991.

REIS, Toni; HARRAD David. Direito de amar: a história de um casal gay. Curitiba-PR: Edição dos autores, 1996.

SOUSA, Gabriel Soares. Tratado descritivo do Brasil em 1587. São Paulo-SP: Companhia
Edito.
[1] MASSOTTI, Alda. Emergência Seriada da Amostra. São Paulo-SP: Editora Pioneira, 2000. 163p.

[2]
 GARCIA, Sandra Mara. Homens e Masculinidades — Outras palavras. 2a ed. São Paulo-SP: Editora 34, 1998. Cap. I. P. 31-51. Apud. RIBEIRO, Aldry Sandro Monteiro.Macho, adulto, branco, sempre no comando Dissertação (Mestrado em Psicologia) — Instituto de Psicologia, Universidade de Brasiília — UnB, Brasília-DF.

[3]
 
NOLASCO, Sócrates. De Tarzan a Homer Simpson: banalização e violência masculina em sociedades contemporâneas ocidentais. Rio de Janeiro-RJ: Rocco, 2001. P. 96.

[4]
 NOLASCO, Sócrates. O mito da masculinidade. 2ª ed. Rio de Janeiro-RJ: Rocco, 1995. P. 91 e 93.

[5]
 Idem. P. 91.

[6] PARKER, Richard. Corpos, prazeres e paixões. 2ª ed. São Paulo-SP: Best Seller, 1991. P. 75.

[7] MONEY, J.; TUCKER, P. Os papéis sexuais. São Paulo-SP: Editora Brasiliense, 1981. P. 12.

[8]
 BETTELHEIM, B. Uma vida para o seu filho: pais bons o bastante. São Paulo-SP: Editora Summus, 1988. P. 48.

[9]
  Expressão em latim cujo significado é “Não existe pecado abaixo do Equador.”

[10]
 Neste ponto, Mott chama atenção para precursor dos estudos sobre a história da homossexualidade entre os ameríndios, Antonio Raquena, que, já em 1945, lançava seu pioneiro e ainda insuperado Notícias y consideraciones sobre las anormalidades sexuales de los aborigenes americanos: Sodomia, publicado na Acta Venezolana, Tomo I, nº 1, jul. s
et. 1945, P. 3-32 [traduzido para o ingles como Sodomy among native american peoples, Gay Sunshine, 38/39, 1979, P. 37-39]. Apesar da postura abertamente homofóbica do autor — até certo ponto compreensível na época —, ele considera este trabalho o vademecum para o estudo deste tema, do qual lançou mão muitas vezes ao longo das páginas que produziu.

[11]
 OVIEDO, G. Fernandez. 
História General y Natural de las Indias (1553). Tomo V, Cap. III. Apud CARDIM, Alberto. Guerreros, chamanes y travestis. Indícios de homossexualidade entre los exóticos. Barcelona: Tusquets Editores, 1984.  P. 150. Segundo Mott, depois de Raquena, Alberto Cardim representa a maior síntese documental referente a esta temática.

[12]
 LOPEZ DE GOMARA, F. Conquista de México — Historia general de indios (1551). Apud RAQUENA, op cit. P. 4.

[13]
 DIAS DEL CASTILHO, B. História verdadera de la conquista de la Nueva Expaña (1605). Tomo I, Cap. 
II. P. 13. Apud RAQUENA, op. cit.

[14]
 http://geocities.yahoo.com.br/luizmottbr/artigos06.html.

[15]
 
SAHAGUN, B. História general de las Nueva España. L. X., Cap. XI. Apud CARDIM, op.cit. P. 153.

[16]
 DIAS DEL CASTILHO, B. História verdadera de la conquista de la Nueva Expaña (1605). Tomo I, Cap. 
II, P. 13. Apud RAQUENA, op. cit.

[17]
 SANTO TOMÁS,Domingo. IN:CARDIM, Alberto. Guerreros, chamanes y travestis. Indícios de homossexualidade entre los exóticos. Barcelona: Tusquets Editores, 1984. P. 250.

[18]
 SOUSA, Gabriel Soares. Tratado descritivo do Brasil em 1587. São Paulo-SP: Companhia Editora Nacional, 1971. P. 308-334.

[19]
 GANDAVO, Pero Magalhães. História da Província Santa Cruz. Tratado da Terra do Brasil (1576). São Paulo-SP: Editora Obelisco, 1964. P. 56-91.

[20]
 Idem. P. 25.

[21]
 Expressão em latim cujo significado é “monstro horrível”.

[22]
 http://geocities.yahoo.com.br/luizmottbr/artigos06.html.

[23]
 ANTON, Iara L. Camaratta. A escolha do cônjuge: um entendimento sistêmico e psicodinâmico. Porto Alegre-RS: Artes Médicas Sul, 2000.

[24]
 Idem. P. 36.

[25]
 Ibidem. P. 37.

[26]
 REIS, Toni: HARRAD David. Direito de amar: a historia de um casal gay. Curitiba-PR: Edição dos autores, 1996. P. 80

[27]
 Idem. P. 86.

[28]
 LINDENBERG FILHO, Carlos Fernando. GLS: entenda as entendidas. Rio de Janeiro-RJ: Gryphus Editora, 2005. P. 7.

[29]
 Idem.

 

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